CONTO

Conto histórico – Ditadura militar – Ironia- Sarcasmo

Explore a história de Linch, ex-agente da CIA, em um Brasil de golpes e ditadura militar. Descubra os segredos e arrependimentos que moldaram seu destino. A obra que foi publicada no livro Nos Porões da Ditadura, trata-se de um conto histórico, irônico e envolvente do início ao fim. Confira!

Nos porões da ditadura, conto histórico em uma época de golpes e ditadura militar.
Nos Porões da Ditadura

EPITÁFIO

Ele se chama Linch. Boa parte da noite foi passada na companhia de um garoto de programa que periodicamente lhe vende sexo e cocaína vagabunda, mas tão logo amanheceu Linch mandou-o embora e agora está sozinho na sua casa em Botafogo, acompanhando a eleição indireta que acontece nessa ensolarada manhã de 15 de janeiro de 1985. Linch aguarda a confirmação da vitória de Tancredo Neves para estourar meus miolos com um tiro. O gatilho será puxado quando o último voto for computado e sua existência medíocre terá fim. No entanto, o nome que será gravado ao lado da Estrela de Davi que adornará a sepultura no Cemitério Nacional de Arlington não será Linch, será Phillip Haldorson, uma vez que o suicídio impedirá que seus restos mortais descansem no Cemitério Israelita de Portland, sua cidade natal.

Linch é oficial formado pela Academia Naval de Annapolis. Graduou-se na turma de 1957 e logo se especializou em inteligência e operações no exterior. Quando Castro chegou ao poder em Cuba, Washington demitiu boa parte dos seus espiões e contratou sangue novo, mas os políticos avisaram que outra derrota como aquela não seria tolerada. Poupado da guilhotina, Linch passou seis meses aperfeiçoando seus métodos em Langley, o Quartel General da CIA.

Ele chegou ainda jovem ao Brasil como adido naval, um nome pomposo para o seu disfarce como agente da Central de Inteligência. Quando Jânio Quadros renunciou, os políticos em Washington surtaram! Era preciso impedir que o vice João Goulart, ligado aos comunistas, assumisse a presidência do Brasil. Assim, Linch desembarcou no Galeão no dia 26 de agosto de 1961, um dia após a renúncia e começou a trabalhar imediatamente.

A tensão era tanta que a qualquer momento a violência poderia explodir. Os militares falavam abertamente em vetar a posse do vice, mas é claro que houve resistência. Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul, começou a Campanha da Legalidade e por pouco o país não foi sacudido por uma guerra civil, pois o comandante do Exército sediado no estado o apoiou. Linch classificou Brizola como “tresloucado”, afinal, o homem chegou a armar a população civil! Ninguém queria sangue. A solução? Parlamentarismo!

A ideia do parlamentarismo caiu como uma luva. Segundo Linch, “o comunista Jango presidiria, mas não governaria”. No entanto, a aceitação do parlamentarismo veio com uma ressalva, ou seja, a realização de um plebiscito para saber se os brasileiros ficariam em definitivo com o parlamentarismo ou voltariam para o presidencialismo. Os líderes americanos esfregaram as mãos de satisfação. Linch sabia da influência direta sobre os mais importantes jornais do país e diversas editoras, de modo que seria muito fácil iniciar uma campanha a fim de manipular a vontade da população e dar continuidade ao parlamentarismo, mantendo Jango como um mero enfeite. Golpe na democracia? Que golpe?

Só que o presidencialismo ganhou de lavada! “Onde erramos?”, Linch se perguntava. Ele não sabia, mas esse resultado inesperado deixou os figurões do Pentágono e de Washington fulos da vida, e a ordem foi clara: Jango teria de cair. Imediatamente se iniciaram as manobras para desestabilizar o governo “do maldito comunista”. Choviam dólares para subornar políticos e “comprar matérias” nos diversos jornais e revistas a fim de criar um ambiente de incertezas de norte a sul.

Linch e seus companheiros de agência tiveram sucesso. A situação do presidente se tornou insustentável e ele foi deposto pelos seus generais. Novamente, os agentes da CIA no Brasil entraram em alerta, porque se houvesse guerra civil, os Marines seriam enviados para ajudar a Junta Revolucionária a dar um fim nos rebeldes e pacificar o país. Felizmente, os próprios militares brasileiros sufocaram os pontos de resistência e a Quinta Frota da US Navy pôde continuar com seus “exercícios” em águas internacionais e longe da costa brasileira.

Quase vinte e um anos se passaram desde a deposição de Jango e muita coisa mudou, e com certeza mais mudanças virão. O agente sabe que muitos brasileiros se sentirão enojados quando a relação promíscua entre o governo americano e os generais brasileiros vier a público. Ele entende o rancor dessas pessoas, assim como entende quando alguns mais exaltados o agridem verbal ou fisicamente ao saberem o que ele e seus companheiros fizeram naqueles cinzentos anos das décadas de 1960 e 1970. Muitos agentes encaravam sua missão apenas como um trabalho qualquer, mas Linch era diferente. Ah, como ele queria que tivesse sido apenas isso, um trabalho! Como ele queria ser um mercenário, e não um idealista! A motivação dele ia muito além de receber alguns milhares de dólares ao final do mês; ele era um agente da CIA porque acreditava em uma causa.

Linch sorri. Ele nunca entendeu como tantas pessoas podem querer um regime como o soviético, onde falta de tudo, desde a comida até a liberdade. Nadia, um contato – e parceira sexual esporádica – que ele tinha em Moscou se referia a esses estrangeiros que se intitulam “amigos da União Soviética” como “comedores de merda”. Os russos não conseguiam entender como as pessoas podiam ansiar por um tipo de governo que vai dominá-los completamente, vai tratá-los de maneira arbitrária, negar-lhes a justiça plena, impedi-los de ter acesso a bens materiais e cercear sua liberdade! Sim, é exatamente isso que acontece na União Soviética! Não se pode negar que o sistema educacional deles teve sucesso em formar profissionais de altíssimo gabarito, mas a forma como os soviéticos se organizaram transformou muitos gênios da ciência em meros burocratas ou escravos do sistema.

Os líderes russos justificam a existência da Cortina de Ferro dizendo que ela protege os trabalhadores da “decadência ocidental”, mas Nadia afirmava que muitos figurões de Moscou adoravam as “decadentes” e confortáveis dachas exclusivas nos Urais ou as casas de veraneio da belíssima Odessa, às margens do Mar Negro. Não eram poucos os políticos russos que se esbaldavam ao visitar as “decadentes” Nova Iorque, Londres, Tóquio e Paris. Para os poucos soviéticos que podiam se dar ao luxo de ter um carro, restava-lhes os velhos Trabant ou Lada, enquanto os membros do partido desfilavam em confortáveis BMW, Mercedez e até nos Rolls Royce fabricados pelos “porcos ingleses”. Para eles, o bônus; para o povo, o ônus! Era contra essa hipocrisia e injustiça que Linch lutava!

Ele confere o placar na TV. Faltam pouco mais de cem votos para o encerramento da eleição. Ele ainda tinha esperanças de que o candidato dos militares fosse vitorioso. Se isso acontecesse, talvez ele abandonasse a ideia do suicídio, mas a diferença de votos está muito grande e Tancredo Neves será o primeiro presidente civil após o longo período em que os militares se sucederam no comando do país; período que a cada dia mais pessoas chamam de ditadura e que ele lamentavelmente ajudou a implantar.

O agente renunciou a muitas coisas para levar adiante os seus ideais de liberdade, progresso e justiça. Vida particular? Que vida? Cansada das constantes ausências, Nancy enviou os papéis do divórcio pelos Correios e foi morar na ensolarada California, isso já no distante ano de 1968. Certa vez, ao ser perguntado sobre o paradeiro da esposa, ele disse que “a vadia estava trepando com um ex-colega da Academia Naval, um maldito filho de chicanos chamado Vasquez”. Seus três filhos cresceram no mesmo período em que a luta pelos direitos civis ganhava força nos EUA e pararam de falar com o pai ao saberem da natureza do seu trabalho. Nem às suas cartas respondiam! Linch os abandonou e não os via desde 1974.

Não, Linch não vai se matar porque o período militar está acabando, ele não é tão leal assim. Ele ri novamente. Mesmo tão perto da morte ele acha forças para sorrir! Linch vai se matar porque considera sua existência sem sentido e que falhou miseravelmente em seus ideais. O que sempre o motivou a continuar com o seu trabalho era saber que lutava pela liberdade e que o mundo seria um lugar muito melhor sem a constante ameaça vermelha. Auxiliados por Washington, os governos que ele e outros ajudavam a implantar em toda a América Latina seriam governos justos, que prezassem a liberdade, livres da corrupção e que melhorariam as condições de vida das pessoas simples.

Governos justos? Prezar a liberdade? Livres da corrupção? Kiss my ass! Quando os presidentes militares foram justos, prezaram a liberdade e seus mandatos foram livres da corrupção? Melhorar a condição de vida dos pobres? Such me! Linch pensava que se os americanos queriam mostrar ao mundo que o seu modo de vida era o correto e que todas as nações deviam vê-los como um modelo a ser seguido, então por que apoiavam, endossavam e reconheciam governos que iam de encontro a tudo o que estava escrito em sua Constituição, principalmente a tão prezada liberdade de expressão?

O Brasil foi sua única designação. Sim, ele permaneceu aqui desde aquele longínquo 1961, e essa permanência fez com que o agente criasse laços com o país. Quando os generais assumiram o poder, Linch encheu-se de esperanças, afinal, aqueles homens estavam agindo para evitar que uma ditadura comunista sanguinária e opressora se implantasse no Brasil, e ele tinha certeza de que Washington faria de tudo para a Revolução desse certo.

Não demorou muito para a desilusão fazer-se presente. Aos poucos, seu idealismo foi substituído por um sentimento de vazio e ele passou a se perguntar “então será esse o meu legado”? Através de seus contatos nas Forças Armadas brasileiras, Linch soube de inúmeras violações dos direitos humanos praticadas nos quartéis contra os opositores do regime. Ele não era inocente e sabia que “alguns danos colaterais” eram aceitáveis, porém, fez um relatório denunciando a situação quando esses “danos colaterais” começaram a ficar muito frequentes. Para sua surpresa, Washington não falou nada.

Com o passar dos anos, os “danos colaterais” não só continuaram como aumentaram. Qualquer um que tivesse alguma opinião divergente corria o risco de ser arrancado de sua casa na calada da noite e nunca mais voltar. Espancamentos, torturas, estupros e demais atentados à integridade humana eram praticadas a torto e a direito pelos militares. Linch soube de fonte segura que uma jovem cantora filha de americanos chamada Rita Lee Jones havia sido presa. Ao dar uma entrevista após sua soltura, Rita afirmou que o militar que a interrogou disse que “só não a matava por que isso daria uma tremenda merda com o Tio Sam”. O governo implantado no Brasil nem de longe lembrava a democracia imaginada por ele, e pelo que sabia, o mesmo acontecia em outras nações como Chile e Argentina. O nepotismo, o favorecimento, a corrupção e falta de eficiência que caracterizavam os piores regimes comunistas do mundo estavam presentes na ditadura brasileira, mas ai de quem abrisse o bico! Preocupado, Linch fazia relatórios denunciando a corrupção e a violência praticada contra jornalistas, artistas, intelectuais e políticos da oposição, mas Washington sempre permaneceu em silêncio.

Só então a ficha caiu para o idealista Linch. Os Estados Unidos não se importavam com a democracia nos países em que seus agentes “trabalharam” para mantê-los longe dos comunistas. Para seus líderes em Washington, pouco importava se os generais presidentes matassem, torturassem e transformassem o seu próprio país em um estado policial como o da Alemanha Oriental ou em um campo de extermínio como o Camboja; o importante era manter a ameaça vermelha bem longe! Pode-se violar todos os preceitos sagrados para os americanos, desde que não seja sob a égide de uma bandeira vermelha contendo a foice e o martelo!

Tudo teria sido muito mais fácil se ele fosse apenas um mercenário, mas não, ele tinha de ser um maldito idealista! Desde então, Linch adotou uma atitude cínica tanto em relação aos seus superiores quanto aos governantes brasileiros. Com o passar do tempo, os ventos da abertura política começaram a soprar e ele deu graças a Deus quando foi promulgada a Lei da Anistia. Aos poucos, parecia que o Brasil retornaria ao processo democrático que ele ajudara a interromper e a eleição de 1985 era a prova vívida disso. No entanto, como todo início de governo tem algum “dano colateral”, o primeiro da nascente democracia brasileira seria a sua morte. Ele devia isso a esse povo!

Pronto, acabou a eleição! O civil Tancredo Neves se elegeu com 72% dos votos! Está na hora! Ele se levanta e liga para um jornal; a voz do outro lado confirma o recebimento de um envelope. O jornalista ainda não sabe, mas o manuscrito dentro do envelope guarda todas as suas memórias contendo detalhes de seu trabalho como agente da CIA. Em seguida, Linch pega um pedaço de papel e rabisca apressadamente:

Por favor, escrevam em meu epitáfio “Aqui descansa um homem que impediu a implantação de uma ditadura sanguinária e ajudou a criar uma ditadura sangrenta”.

Cínico até na hora da morte! Linch deixa o papel sobre a mesa e examina o tambor do seu Smith & Wesson; está carregado. Com calma, ele se senta no sofá e engatilha a arma. Respira fundo, insere o cano na boca e puxa o gatilho.

Escrito por Alexandre Naves

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