CONTO

HUMOR-FICÇÃO-NARRATIVA DITADURA MILITAR

Descubra a história de Ribeiro, o eterno subversivo! Acompanhe esse conto de humor envolvente, onde ele transforma a opressão em resistência. Leia agora e mergulhe nessa narrativa cativante!

O velho Subversivo. Conto escrito por Alexandre Naves. Humor, ficcção e ditadura militar

— Acorda, Maria! Aconteceu durante a noite!

Sonolenta, Dona Maria abriu os olhos e encarou o marido, que a sacudia.

— Pelo amor de Deus, Ribeiro, que agitação é essa logo de manhã? E que raios aconteceu durante a noite para te deixar assim? —Perguntou a mulher, já acostumada aos rompantes do marido.

— Os militares deram o golpe e depuseram o Jango! Escuta só, está em todas as rádios! Escuta! Escuta!

Dona Maria conhecia o marido e sabia que não a deixaria em paz enquanto não fizesse o que pedia. Realmente, o locutor confirmava o que Ribeiro acabava de lhe contar. Enquanto ouvia, soaram batidas na porta.

— Será que já são eles? — O marido perguntou.

— Eles quem, Ribeiro? — Perguntou a mulher, bocejando e saindo da cama, enquanto lutava contra a visão já enfraquecida pela idade e tentava encontrar seus chinelos.

— Os militares! Será que já vieram me prender?

Novas batidas. E mais fortes!

Dona Maria Ribeiro sabia que se fosse a Polícia eles já teriam derrubado a porta e invadido a casa, então lá foi ela, arrastando os pés inchados e doloridos abrir a porta. Não eram os militares, era Miltinho, o menino que entregava o jornal diariamente.

— Que alívio! — Exclamou o marido, sentando-se no sofá, enquanto a esposa deixava o jornal sobre a mesa e se dirigia à cozinha para fazer um café. — Mas eles virão, Maria, com certeza virão atrás de mim!

— Talvez não venham — disse ela, surgindo na porta entre os dois cômodos.

— Ah, vão vir sim, mas dessa vez não vou fugir; já deixei até as minhas coisas arrumadas — disse Ribeiro, apontando a mala ao lado do sofá. — Estou levando alguns livros e meias extras; da última vez meus pés quase congelaram na cadeia.

A situação era séria; entretanto, Dona Maria não pôde deixar de rir do marido. Apesar do capitão Ribeiro já estar um pouco idoso para se envolver em peripécias políticas, seu histórico justificava a preocupação. Ribeiro fora oficial do Exército e andou metido em diversos episódios de agitação política, sempre contra o poder estabelecido, ou como Dona Maria gostava de dizer, “sempre do lado errado”, o que acabou lhe granjeando o apelido de “Encrenqueiro da Praia Vermelha”.

Ribeiro participou da revolução que depôs Washington Luís, uma das raras, senão a única causa que apoiou e foi vitoriosa, mas pouco depois aliou-se aos paulistas na Revolução de 1932. Nem é preciso mencionar que ele não perdeu a oportunidade de participar da Intentona Comunista de 1935, afinal, ele era um dos fundadores do Partido Comunista do Brasil, tendo em seu poder diversas fotos onde aparecia ao lado de Luís Carlos Prestes. Mais tarde, apoiou o movimento que depôs Getúlio Vargas em 1945 e acabou detido novamente quando o PC do B foi proscrito em terras tupiniquins. O tempo passou, a idade começava a cobrar seu tributo e Ribeiro já tinha sofrido até um AVC, mas o velhinho era obstinado e duro na queda. Assim, desde a posse de Jânio Quadros, entre uma rodada e outra de baralho e xadrez nas mesas das praças, ele e alguns antigos colegas de “Partidão” viviam fazendo planos para “derrubar os corruptos” e tomar o poder. Com um currículo desses, Ribeiro tinha certeza que era apenas uma questão de tempo até os militares aparecerem na sua porta e o levarem preso após a deposição do João Goulart.

Passaram-se três dias, mas a Polícia não apareceu. Durante esse período, Ribeiro acordava religiosamente às seis horas da manhã, cuidava da sua higiene matinal, fazia seu desjejum e ia conferir se tudo que precisaria na cadeia ainda estava na mala. Depois, sentava-se no sofá e ficava de nariz empinado, pois “mostraria aos soldados que um homem forjado no aço nada teme”. Passaram-se quatro, sete, dez dias e nada dos “militares golpistas” virem prender o eterno subversivo.

— Mas que raio de golpe de Estado chinfrim é esse, Maria? — Esbravejava o velho revolucionário, inconformado. — Eu sempre deixei bem claro que se tomasse o poder, colocaria a Polícia e o Exército atrás de todos os meus opositores e os deixaria apodrecendo no presídio da Ilha Grande! Por que eles não vieram me prender? Eles deveriam saber que sou um perigo para essa revolução fajuta! Como eles têm a audácia de me deixar solto?

Dona Maria, um poço de bom senso e sabedoria, tentava argumentar:

— Ribeiro, você já tem quase 70 anos e…

— Então é porque sou um velho? Acham que o capitão Ribeiro já está morto? Pois vou procurar o Jorge, o Luís, o Oscar, o Mário e vamos ver o que podemos fazer, isso se eles ainda não foram presos! Eles generais de pijama não perdem por esperar!

Ribeiro pegou a bengala e saiu. Quanto à Dona Maria, bem, ela sabia que era inútil insistir para o marido sossegar e foi cuidar dos afazeres da casa. Horas depois, ao escutar a porta se abrindo, foi até a sala, mas não era Ribeiro, era o filho, Agildo, ator de teatro, chegando de mais uma turnê.

— Onde está o papai? Ele foi preso? — A preocupação de Agildo era evidente.

— Prenderam nada, e é isso que está deixando seu pai incomodado.

Dona Maria fez um breve resumo dos últimos dias e Agildo não conteve o riso ao ver a mala. Mãe e filho passaram um bom tempo conversando e compartilhando as incertezas e temores de dias sombrios que se avizinhavam. Pouco depois, Ribeiro chegou resmungando e sequer cumprimentou o filho:

— Golpezinho de republiqueta! Acredita que estão todos soltos? Nem o Oscar eles prenderam! Passaram duas viaturas da Polícia, nos viram ali jogando damas e sequer nos revistaram. Isto é um desrespeito à nossa memória! — Disse o idoso capitão.

— E quando vocês pretendem depor os militares? — Perguntou a esposa, rindo.

— Você brinca com coisa séria, mulher — resmungou, caminhando ao seu dormitório para descansar um pouco.

Agildo conversou mais um pouquinho com a mãe, tomou um banho e foi visitar a noiva, Consuelo, filha do coronel Tenório. Ele aproveitou para perguntar ao futuro sogro se havia alguma ordem de prisão destinada ao seu pai, mas Tenório afirmou categoricamente que “devido à idade, o capitão Ribeiro não representava perigo para a Revolução e não havia ordem de prisão ou detenção para ele”. Agildo agradeceu e voltou aliviado para casa. Idoso e doente, seu pai certamente não suportaria o encarceramento.

No dia seguinte, Ribeiro amanheceu com febre e se sentindo muito mal. Dona Maria e o filho fizeram de tudo para tirá-lo da cama e levá-lo ao médico, mas o velho capitão fez birra e disse que se sentia cansado e desanimado. Agildo havia marcado um cinema com a noiva, mas quis ficar em casa. No entanto, sua mãe insistiu e disse para ele seguir com a sua vida que o pai melhoraria em breve.

Porém, Ribeiro não melhorou. No dia subsequente o seu abatimento era notório e ele estava num estado de total prostração, deixando seus familiares preocupados.

— Mãe, vou dar uma saída e não demoro!

— Aonde você vai, meu filho?

— Esqueci de deixar os papéis da turnê no teatro.

Agildo saiu apressado e pouco depois já estava de volta.

— E aí, mãe, ele melhorou?

— Não, a febre continua alta.

Subitamente, ouviu-se o barulho estridente de pneus cantando do lado de fora da casa; pouco depois alguém bateu à porta e gritou:

— Abram agora ou vamos arrombar! É a Polícia!

Ribeiro sentou-se na cama imediatamente.

— Finalmente! Pensei que eles não viessem — disse, com um largo sorriso.

Os agentes da lei continuavam batendo e chamando, até que um deles, cansado de esperar, estourou a fechadura e a sala foi ocupada por seis soldados do Exército.

— Nossos informantes afirmam que aqui é a residência do capitão Ribeiro, mais conhecido como o Encrenqueiro da Praia Vermelha. Procede? — Perguntou um militar de mais idade, provavelmente um oficial.

— Sim, senhor, ele é o meu pai. Aconteceu alguma coisa?

— Ele está sendo detido para interrogatório!

— Mas o senhor tem um mandado? — Perguntou Agildo.

O oficial apoiou a mão na coronha da arma e disse:

— Aqui está o mandado! Soldados, revistem a casa e detenham o capitão Ribeiro!

— Não precisa, eu estou aqui — disse, saindo do quarto. — Posso ao menos vestir uma roupa decente?

— Pode sim, mas não demore; não temos o dia todo!

Ribeiro retornou ao quarto e um militar postou-se à porta, certamente para vigiar os movimentos do detido e evitar que este fugisse. O comandante deu um safanão na cabeça de um dos soldados e disse:

— Energúmeno! Eu dei ordens para arrombar a porta?

Os demais militares riram.

Minutos depois Ribeiro estava de volta, vestindo um elegante terno preto. Seu rosto tinha uma expressão altiva e desafiadora.

— Estou pronto para ir para a cadeia — disse ele.

— O senhor não está sendo preso, será um interrogatório! Bem, isso vai depender das respostas que nos der, pois se descobrirmos que o senhor anda metido com os comunistas…

— Posso levar minha mala?

— Positivo — respondeu o oficial, ordenando ao soldado que havia arrombado a porta. — Reviste a mala e leve-a para a viatura.

— Não precisa, eu mesmo levo — Ribeiro argumentou.

— Escute aqui, sua mala e o senhor estão sob custódia — respondeu o oficial de forma grosseira, que em seguida dirigiu-se à Dona Maria. — Venha conosco para testemunhar o interrogatório!

Dona Maria concordou e foi escoltada junto com o marido até a viatura. Agildo optou por ficar em casa e arrumar a porta, enquanto aguardava o desenrolar daquela história.

Já passava das dez horas da noite quando um carro parou e Agildo viu que era uma viatura do Exército, e dela desceram seus pais e o mesmo oficial que o deteve horas antes.

— Por hoje o senhor nos convenceu — disse o militar. — Mas se descobrirmos que mentiu no interrogatório viremos prendê-lo imediatamente.

Ribeiro entrou com um sorriso triunfante no rosto, e ao passar por Agildo, sussurrou:

— Eu resisti, meu filho. Não dei o nome de nenhum camarada!

— Ei, você, filho do subversivo, venha aqui! Quero te fazer algumas perguntas!

Agildo confirmou que o pai estava no quarto, trancou a porta e foi falar com o oficial, e ao se aproximar, este último deu uma risada.

— E então, fomos convincentes?

— Coronel Tenório, não tenho palavras para te agradecer! — Agildo respondeu. — Viu como ele ficou mais animado? Olha, acho que meu pai acabaria morrendo de desgosto se não tivesse sido preso! Dá para acreditar nisso?

Mais cedo, ao sair de casa dizendo que iria ao teatro, Agildo foi até o quartel onde seu sogro estava lotado e explicou a situação do pai. Aos risos, ele e o coronel planejaram encenar a prisão do capitão Ribeiro, que foi levado para a unidade militar e inquirido no gabinete do major Benício, que aceitou participar da farsa do “interrogatório” de seis horas ininterruptas. “Convencidos” das respostas de Ribeiro, o major e o coronel “decidiram liberá-lo por falta de provas concretas, mas avisaram que o manteriam sob vigilância para o bem da Revolução”.

— Desculpe pela porta; o Ramalho jura que não fez por mal. Amanhã mandarei um marceneiro arrumá-la — disse o coronel.

— Não precisa, já arrumei.

Despediram-se e Tenório entrou no carro, enquanto Agildo voltava para dentro e encontrava um Ribeiro eufórico e curado da febre.

— O velho capitão está de volta — disse , triunfante. — Sua mãe me acompanhou e viu tudo! Eu fraquejei, Maria? Diz pra ele se eu fraquejei! Diz! Diz!

— Não fraquejou, Ribeiro, pelo contrário, você foi muito forte — disse a mulher, que era amiga da esposa do coronel e desde o início percebeu a armação.

Alguém bateu à porta. Ribeiro levantou-se para atender e levou um susto ao ver-se novamente diante do oficial.

— Mas… já vieram me prender? Eu não menti em nada.

— Não, sua mala ficou na viatura — respondeu o militar, entregando-a e indo embora.

Dezembro de 2018.

Escrito por Alexandre Naves

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