Mistério- suspense- épico
“A Maldição Cigana”. Descubra os segredos e reviravoltas de um intrigante conto de mistério que vai prender sua atenção até a última palavra. Publicado na coleção “A Palavra Também é meu Ofício” o conto foi vencedor do concurso literário promovido pelo sistema SESI/FIRJAN 2018.
Bernardino quase não tinha o que reclamar da vida. Casara-se aos vinte e dois anos com Maria Lúcia, filha do coronel Libório, uma donzela de apenas dezesseis anos, mas muito prendada, recatada e amorosa, além de ser inteligente, vivaz e muito bonita. Por ocasião do matrimônio, seu pai presenteou-o com uma de suas fazendas e um lote de escravos, mas este ficou escandalizado quando o filho disse que, diferente do que todos faziam, não plantaria café; investiria em gado.
– Não seja tolo, meu filho – disse o velho José Raimundo. – Todo mundo planta café, e todos estão ganhando muito dinheiro!
– Esse é o problema, meu pai. Ninguém planta outra coisa… e se um dia os gringos pararem de comprar o nosso café?
– Isso nunca vai acontecer, menino – respondeu, mas no fundo José Raimundo sentia orgulho do espírito inovador do filho, de modo que deixou-o seguir em frente com seu empreendimento.
Agora, aos trinta anos, Bernardino tinha prosperado como nunca. A venda de carne e leite ia de vento em popa; ele adquirira mais terras e já tinha vindo gente até de fora do país para ver as suas vacas leiteiras. Sim, ele agora era um próspero fazendeiro, e seu maior orgulho e xodó era Parrudo, o touro reprodutor da fazenda. Por ser bem tratado, Parrudo cresceu e desenvolveu poderosos músculos, e era impossível olhá-lo sem admirar seu tamanho, porte e beleza. Apesar de sua aparência imponente e os longos chifres inspirarem medo, o touro era muito manso, ficando agitado apenas na presença de vacas no cio.
Oito anos já haviam se passado desde que desposou Lúcia, e mesmo após tanto tempo, ela continuava a amá-lo e devotar-se unicamente a ele. Bernardino também a amava e retribuía essa fidelidade, tanto que nas duas vezes que esteve em comitiva com seus vaqueiros ele permaneceu no acampamento, enquanto metade dos peões passou a noite no prostíbulo debeira de estrada.
Entretanto, Bernardino “quase” não tinha o que reclamar da vida. Ele era rico, respeitado e feliz no casamento, porém, o ventre de Lúcia teimava em permanecer infrutífero, trazendo ansiedade e frustração ao casal. Muitos médicos foram consultados, tratamentos foram tentados, missas foram rezadas, mas infelizmente parecia que o casal estava fadado a não ter filhos, fazendo Lúcia sofrer e passar por longos períodos de melancolia; por consequência, o marido sofria junto. E assim o tempo ia passando; apesar do infortúnio pessoal do seu dono, a fazenda prosperava.
Certo dia, uma caravana de ciganos pediu autorização para atravessar as terras de Bernardino e este concedeu-lhes passagem. Todos que moravam na fazenda (inclusive seu dono) vieram para a beira da estrada a fim de ver aquele povo misterioso e exótico, com suas roupas coloridas e costumes um tanto estranhos aos olhos daquela gente simples do sertão. Uma das carroças chamava a atenção pela quantidade de enfeites e tamanho, e ao passar por Bernardino, a cortina lateral abriu-se, revelando o rosto de uma mulher. Ela sorriu e falou alguma coisa ao cocheiro, imediatamente a carroça parou.
A mulher desceu e veio ao encontro de Bernardino. Era de média estatura, devia ter pouco mais de trinta anos e tinha a pele morena. Assim como a maioria das ciganas, ela usava roupas estampadas e chamativas. Seu vestido era repleto de estampas multicoloridas sobre um fundo amarelo; os cabelos longos, totalmente negros e ondulados estavam presos por uma fita de cetim verde. Os dedos estavam repletos de anéis dourados, argolas de ouro enfeitavam suas orelhas e uma infinidade de colares adornava seu pescoço. Sua postura e modo de lidar com os outros membros indicavam que Bernardino falava com a líder daquele povo.
– Boa tarde, senhor. Meu nome é Soraia e em nome do meu povo quero agradecer por autorizar nossa passagem em suas terras – disse a mulher, estendendo a mão.
– Não há de que, senhora – respondeu Bernardino, tomando e beijando a mão dela. –
Sejam bem-vindos e sigam seu caminho em paz.
Inesperadamente, Soraia segurou a mão dele com força e fechou os olhos. Bernardino tentou soltar-se, mas ela segurou-o por quase dois minutos. Sua boca movia-se como se ela fizesse uma oração silenciosa. Finalmente, ela abriu os olhos e encarou-o.
– Foi-me revelada a sua infelicidade – disse, olhando-o fixamente. – Hoje é noite de lua cheia, venha jantar comigo em meu acampamento. Vou recompensar a sua hospitalidade, então traga a sua esposa.
Cético, Bernardino deu uma risada. Com toda a certeza, ao passar pelo povoado vizinho, a cigana colhera informações sobre ele e soube da esterilidade de Lúcia; agora ela tentava impressioná-lo com uma suposta clarividência.
– Iremos se Lúcia não estiver indisposta. Mas mesmo assim agradeço.
– Leve-a – Soraia insistiu. – Rezaremos para que o ventre dela frutifique.
– Como disse, só a levarei se ela quiser.
Soraia percebeu que ele não acreditava nela.
– Não zombe, senhor Bernardino. Uma verdade não se torna uma mentira só porque o senhor a desconhece! Venha e traga sua esposa! – Soraia entrou em sua carroça e a caravana seguiu o seu caminho.
Ao chegar em casa Bernardino falou à esposa sobre o convite, e esta, muito supersticiosa, não se mostrou animada.
– O que iremos fazer no meio desse povo, meu marido? Essa gente é toda estranha, tem seus próprios costumes, não sei se devemos ir.
– Ora, o que tem demais? Ela quer apenas retribuir uma gentileza. Nunca estive num acampamento cigano, mas acho que não acontecerá nenhuma bizarrice. Músicas, churrasco, acho que só isso mesmo! – Bernardino achou melhor ocultar da esposa o fato de Soraia ter mencionado sua infertilidade.
Embora Lúcia ainda relutasse, logo que escureceu a charrete foi preparada e o casal dirigiu-se ao acampamento, que fora erguido numa planície às margens do Riacho das Pedras, e mesmo tendo chovido bastante nesse início de dezembro, o corpo d’água corria manso. Os cavalos estavam livres e pastavam, enquanto uma fogueira ardia e ao seu redor estavam distribuídos generosos pedaços de carne bovina e suína que assavam lentamente, impregnando o ar com o delicioso cheiro de churrasco. Três mulheres e quatro homens bailavam ao som da música flamenca enquanto os demais batiam palmas.
Assim que o casal se aproximou, Soraia levantou-se e saiu ao seu encontro, fazendo questão que se sentassem ao seu lado. A festa prosseguiu noite adentro com animação total, regada a muito vinho, churrasco e dança. Até mesmo Lúcia foi respeitosamente tirada para dançar por Iago, irmão de Soraia, e esta última ria a valer enquanto tentava ensinar os passos do flamenco a Bernardino.
A cigana reparou que era a terceira vez que seu convidado olhava o relógio nos últimos minutos, indicando que este estava preocupado com o horário.
– Está muito tarde, é melhor irmos embora – disse Lúcia ao seu marido. – Você precisa acordar cedo amanhã.
– Por favor, antes de irem, quero que venham até meu retiro – a anfitriã convidou e levantou-se, apontando para uma grande tenda colorida armada num extremo da planície.
– Já é tarde, precisamos ir – Lúcia antecipou-se à resposta do marido. – Mas agradecemos muito a sua hospitalidade.
– Venham, eu insisto. Não tenham medo.
O casal então seguiu Soraia, que já havia entrado na tenda e rezava diante da imagem de uma santa que eles não souberam identificar. Ela estendeu a mão e pegou um copo cheio d’água que estava aos pés da imagem e postou-se diante do casal.
– Hoje é o segundo dia de dezembro, dia de Santa Bibiana, nossa padroeira – disse Soraia de forma solene. – Nossa Mãe se compadece dos que sofrem, e assim como a Virgem concebeu pela graça de Nosso Senhor, que o manto da Santa se estenda sobre vós e que o ventre de Maria Lúcia seja abençoado com o fruto de vossa união!
Lúcia ficou olhando para o copo estendido por Soraia na direção do casal.
– O que é isso? – Ela perguntou, desconfiada.
– Água benta – respondeu a cigana com um sorriso. – Mas não é você quem deve beber; quem precisa da bênção é o seu marido. A terra é boa, mas a semente é fraca.
– O quê? – Bernardino perguntou.
– Exatamente. Por favor, não se ofenda, mas foi-me revelado que o senhor não pode gerar filhos devido a uma doença que teve quando ainda era uma criança.
Bernardino pegou o copo e fitou-o, ainda sem coragem para beber o líquido. De fato, ele contraiu caxumba quando tinha seis ou sete anos, e lembrava-se perfeitamente da mãe advertindo-o que deveria ficar quieto e não tomar friagem para “a doença não descer”. Bernardino riu; ele precisava saber quem tinha dado todos esses detalhes de sua vida a uma pessoa estranha.
– Beba, e por uma noite a semente ficará forte – disse Soraia, e subitamente pôs as mãos no abdômen de Lúcia. – Ela está fértil, a criança será abençoada por ter sido gerada no dia de nossa Mãe Maior.
– Meu marido, não beba! – Lúcia pediu.
– É apenas água, minha amada – respondeu, sorrindo. – Que mal um simples copo com água pode me fazer?
Bernardino levou o copo aos lábios.
– Mas haverá um preço – sentenciou Soraia.
Ele interrompeu o movimento. “Claro! Sempre há um preço”, ele pensou. – E que preço é esse? – Perguntou, com uma expressão de desdém no rosto.
– Vejo que não acredita em mim, então façamos um trato. Não quero nada hoje; amanhã estarei levantando acampamento e seguindo meu caminho, mas voltarei no ano que vem, exatamente no dia de Santa Bibiana e irei até sua casa. Se o ventre de Maria Lúcia tiver frutificado, o senhor dará o que a padroeira pedir.
– Desde que não peça a minha alma ou o sangue da criança em sacrifício… – Bernardino respondeu com deboche, provavelmente influenciado pelo vinho.
– Não somos bárbaros nem pagãos – respondeu a cigana com um sorriso. – Beba e sele o acordo! O que tem a perder? Se sua esposa não engravidar, o senhor não ficará me devendo nada, mas se a Mãe conceder a bênção, pode ficar sossegado que ela exigirá um preço que o senhor poderá pagar.
– Meu esposo, vamos embora, não beba – Lúcia implorou.
Ele ignorou o pedido; levou o copo à boca e bebeu até a última gota.
– À Santa Bibiana! – Exclamou, erguendo o copo em direção à imagem. – Venha,
Lúcia, vamos embora.
– Amém – respondeu Soraia, com um largo sorriso.
O casal despediu-se e saiu da tenda. Um jovem rapaz já atrelara o cavalo à charrete e entregou-a pronta para partir. Bernardino ajudou Lúcia a subir e puxou as rédeas.
– Voltarei no próximo ano – disse Soraia, enrolada em seu xale.
O fazendeiro deu meia volta e tomou o rumo da estrada que levava até a fazenda.
Bastou chegar em casa para Bernardino sentir um desejo incontrolável pela esposa, então ergueu-a nos braços e levou-a para o quarto. Ignorando os pedidos e súplicas da mulher para controlar a luxúria, ele amou-a com paixão e ardor. Possuiu-a como há muito tempo não possuía; amou-a como se não houvesse amanhã; amou-a até o dia clarear.
No dia seguinte ele soube que realmente os ciganos tinham partido, e assim a fazenda voltou à sua rotina de trabalho. Os dias foram passando e Maria Lúcia seguia presa aos seus afazeres domésticos, mas não deixou de perceber que suas regras mensais, quase sempre tão pontuais, não vieram. Ela não iria criar uma falsa expectativa no marido para depois o mesmo ser acometido pela decepção, como já acontecera antes, então não falou nada.
O atraso já durava um incontável número dias quando certa manhã, ao sentir o cheiro dos pedaços de toicinho sendo defumados em varas suspensas sobre o fogão a lenha, Maria Lúcia teve uma fortíssima ânsia de vômito. Mal deu tempo de chegar ao banheiro e ela vomitou o pouco que já tinha comido, passando o resto da tarde deitada. Aquele quadro de indisposição estomacal alongou-se por vários dias, deixando Bernardino um tanto inquieto e este, preocupado com o bem-estar da esposa, mandou trazer o doutor Jorge, médico da cidade, e o diagnóstico não foi outro: Maria Lúcia estava grávida!
Os meses que se seguiram foi de uma alegria imensurável para o casal. Se antes Bernardino já amava a esposa, agora seus cuidados chegavam à beira da adoração, estando sempre pronto para atender suas vontades. Até os desejos mais estranhos da esposa foram atendidos sem a menor demora. Certa vez, ela acordou às duas horas da madrugada dizendo que estava com desejo de comer goiaba vermelha molhada com orvalho, e assim, minutos depois, lá estava o dedicado marido subindo nas goiabeiras do pomar em plena madrugada, escolhendo as frutas mais maduras e umedecidas pelo orvalho outonal.
Os meses foram passando, a barriga de Lúcia crescendo e a alegria de Bernardino aumentando no mesmo ritmo. Entretanto, conforme se aproximava o tão esperado dia, ela foi ficando apreensiva. O que será que a cigana iria pedir? Nunca mais o marido mencionou o acordo feito com Soraia, e na única vez que ela tocou no assunto, a resposta dele foi direta:
– Não se preocupe, minha amada. Acho que esse povo nunca mais voltará aqui, mas se voltar, dou algum dinheiro e pronto! Ou então ouro, ciganos adoram ouro! Compro uma bela corrente de ouro para a cigana e minha parte no acordo com a santa estará quitada.
Lúcia sentia um aperto no coração sempre que pensava no assunto, mas talvez o marido estivesse certo; só restava a ela aguardar e rezar diariamente para que Nossa Senhora a protegesse e guardasse quando chegasse a hora.
E assim, em fins de agosto, Lúcia entrou em trabalho de parto. Parteira? Que nada! Bernardino não mediu esforços e despesas, trazendo o doutor Jorge para cuidar pessoalmente da esposa. E então, quatro horas após a bolsa ter rompido, Lúcia segurava uma criança nos braços, não cabendo em si de tanta felicidade. Bernardino entrou no quarto e emocionou-se quando a esposa orgulhosamente exibiu a criança.
– É um menino, um menino lindo – disse ela, chorando de alegria.
Sim, Alfredo (foi esse o nome escolhido) nasceu grande, forte e saudável, e seu nascimento completou a alegria do casal. Parentes e amigos multiplicaram-se em visitar o fazendeiro, que fazia questão de festejar com eles a sua alegria. Bernardino era abolicionista e alforriou todos os seus escravos, mas a maior parte deles preferiu continuar trabalhando na fazenda em troca de um teto e um salário, e entre esses libertos estava Regina, uma mulher forte e robusta muito apegada a Lúcia, de modo que ficou sendo a ama de leite do menino.
Alfredo já tinha três meses e seguia crescendo e engordando a olhos vistos. Era um fim de tarde de domingo, dia 2 de dezembro, e como sempre fazia, Bernardino levou Lúcia e o filho ao curral, onde ficava escovando Parrudo quando uma carroça solitária despontou na estrada. O fazendeiro achou que era apenas mais um passante que cruzava suas terras para chegar à cidade, entretanto, a carroça tomou o rumo de sua casa e parou junto ao portão; dela desceu Soraia, que abriu um sorriso ao ver Lúcia segurando o bebê.
– Vejo que Santa Bibiana não falhou – disse ela. – Posso dar minha bênção à criança?
O casal permitiu, embora com alguma relutância. Soraia pousou a mão direita sobre a cabeça da criança e fez uma oração em romanês, a língua dos ciganos.
– Você cumpriu sua parte no trato, então cumprirei a minha – disse Bernardino, sentindo um pequeno incômodo com a presença da cigana. – Diga o seu preço!
– Senhor Bernardino, assim o senhor me ofende! Não sou eu que estipulo o preço; o senhor ainda não entendeu que eu não fiz nada? Tudo foi obra da Mãe! E posso garantir que a Santa não precisa de dinheiro.
“Mas com certeza a Santa irá querer ouro”, pensou o fazendeiro.
– Então, diga o que Santa Bibiana quer em troca do milagre que ela fez – Lúcia falou, querendo que a cigana fosse embora o mais rápido possível.
Soraia fechou os olhos e estendeu as mãos com a palma virada para cima, ficando nessa postura de oração por vários minutos. Finalmente, ela encarou seus anfitriões.
– O touro! Santa Bibiana quer este touro de presente!
– Parrudo? O meu touro premiado? – Bernardino perguntou, arregalando os olhos. – Mas de jeito nenhum! Meu touro não, peça outra coisa! Você quer dinheiro? Ouro? Vá ao meu rebanho e escolha qualquer boi ou vaca! Sim, deixo você escolher cinco cabeças, menos o Parrudo!
– A Mãe não quer seu dinheiro, muito menos o seu ouro! – Respondeu a cigana, séria.
– Ela deseja apenas o touro mais garboso para carregar seu andor em nossas procissões.
– Você quer justamente o touro do qual sinto tanto orgulho? Não, escolha dez entre o rebanho, mas o Parrudo você não leva!
Soraia franziu o cenho.
– O senhor fez uma promessa, e a Santa não pediu nada impossível. Nossa Mãe fez o milagre, agora o senhor deverá cumprir com o prometido.
– Bernardino, você prometeu dar o que ela pedisse; ela pediu o touro, então dê o touro a ela – Lúcia pediu, temerosa e aflita.
– Claro que não vou dar meu touro de presente a essa vigarista! Em outra ocasião ela já chegou aqui sabendo de tudo a meu respeito; provavelmente deu dinheiro a algum cachaceiro lá da cidade e ele contou que você não engravidava. Além disso, qualquer pinguço mais velho sabe que tive caxumba. Acha que me impressionou com sua suposta adivinhação?
– Lembre-se, o que é dado pode ser tirado – disse Soraia, de maneira calma e impassível.
– Você está ameaçando meu filho? – Bernardino gritou, pegando o chicote que estava sobre a cerca e apontando-o para a cigana. – Vá embora agora! Saia da minha propriedade e nunca mais volte. Você e aquele seu povo imundo estão proibidos de pisar em minhas terras!
– Bernardino, cumpra o que prometeu – implorou a esposa, chorando.
– Ele não é seu filho, é filho da Santa. E o senhor se recusa a pagar a promessa feita a ela? Pense bem no que está fazendo – Soraia continuava calma.
– Quero que você e sua maldita santa vão para o inferno! Suma daqui!
– Está bem, eu vou embora – disse ela, dando meia volta e caminhado em direção à sua carroça, e então, subitamente ela voltou-se e apontou o dedo indicador para a família. – Mas não admito que minha Mãe seja ofendida e desrespeitada; que o pagamento não feito seja a ferramenta para se resgatar o que é devido. Retiro a minha bênção e os amaldiçoo! Esse menino morrerá nos chifres do touro Parrudo!
– Valei-me, minha Nossa Senhora – Lúcia gritou, desesperada.
A criança começou a chorar.
Bernardino empunhou o chicote e caminhou na direção da cigana disposto a agredi-la, mas esta olhou-o com firmeza e ele interrompeu seu avanço, recuando em seguida. Soraia tirou as sandálias e sacudiu o pó antes de subir na carroça, também cuspiu no chão logo que pegou a estrada.
– Você deveria ter feito o que prometeu – Desesperada e chorando, Lúcia veio ao encontro do marido. – Olha só o que ela fez, nosso filho está amaldiçoado!
– Se acalme, mulher! Não vou deixar que nada de ruim aconteça ao nosso Alfredo!
Muito supersticiosa, Lúcia temeu que o filho subitamente adoecesse e mandou rezar inúmeras missas para Nossa Senhora da Conceição. Porém, contrariando seus temores, a criança crescia e se desenvolvia com saúde. Os negócios continuaram prosperando e a fazenda progredia.
Entretanto, não passou despercebido ao seu coração de mãe que Parrudo ficava mais agitado sempre que ela se aproximava com a criança no colo. Certa vez ela falou ao marido a respeito do que observara e o mesmo disse que “era coisa da cabeça dela, pois o touro continuava manso como sempre”.
Passaram-se três anos e Lúcia jamais engravidou novamente. Para Bernardino, a maldição de Soraia foi entregue ao esquecimento, mas não para a esposa, que periodicamente
implorava ao marido para procurar os ciganos e pagar a promessa, ou então vender o touro a fim de afastá-lo do filho, mas ele negava-se terminantemente a se desfazer do animal “por causa de uma tolice”. Para ela, entretanto, tudo ficou pior depois que Alfredo aprendeu a andar, pois bastava que se descuidasse um pouco e lá estava o menino correndo na direção do curral, deixando a mãe desesperada.
Alfredo já estava com quatro anos e continuava se desenvolvendo e crescendo com uma saúde de ferro. Percebendo que o filho adorava cavalos, Bernardino comprou-lhe um pônei para “ir pegando o jeito com a montaria”, e não é que o pequeno realmente levava jeito? O pai quase não cabia em si de orgulho, porém, atendendo às súplicas da esposa, nunca permitiu que o menino tivesse contato com Parrudo.
Certo dia, Alfredo estava brincando no gramado em frente a casa quando alguém gritou com voz aflita:
– Quem esqueceu de fechar o portão do curral?
O coração de Lúcia disparou ao ouvir o alerta, pois ela sabia que Alfredo estava no gramado. Movida pela preocupação, a mãe correu e chegou a tempo de ver o filho sob o abacateiro e o touro parado à distância, bufando e cavando o chão enquanto tinha os olhos fixos na criança. Ela gritou, no mesmo instante o touro soltou um urro aterrador e partiu para o ataque. Paralisada, ela viu o animal aproximar-se cada vez mais do filho, que apenas olhava inocentemente aquela pilha de músculos correr em sua direção. Lúcia escondeu o rosto entre as mãos e desmaiou quando ouviu o choro da criança.
***
– Acorde, Lúcia! Vamos, acorde!
Lúcia abriu os olhos e viu o rosto preocupado de marido. Assustada, olhou à sua volta e percebeu que estava em seu quarto, deitada em sua cama. Ela lembrou-se do que aconteceu e começou a chorar convulsivamente, mas seu choro transformou-se numa alegria incontida quando Regina entrou com Alfredo nos braços. Ela mal podia acreditar que ele não tinha um arranhão sequer.
– Mas como? Eu vi o touro… como… como ele não se machucou? – A voz dela estava entrecortada pela emoção e pelo alívio, enquanto abraçava Alfredo.
– Foi o Tonho, sinhá. Ele estava perto e conseguiu chegar no sinhozinho antes do touro e ficar com ele em cima do abacateiro até os peões levarem o Parrudo – respondeu Regina.
O menino Tonho, de doze anos, era filho de Regina e cuidava da horta cultivada e mantida por Lúcia, por isso estava sempre por perto.
– Vem aqui, Tonho – Lúcia chamou, ao ver que o heroico menino aguardava do lado de fora do quarto.
Ele se aproximou e Lúcia deu-lhe um beijo na testa.
– Meu querido Tonho, obrigado por salvar meu filho – agradeceu, emocionada.
– Carece de agradecer não, sinhá – respondeu o garoto. – Gostamos muito de vocês.
Os empregados saíram, ficando apenas o casal e a criança. Lúcia foi taxativa.
– Acredita agora? O Parrudo nunca atacou ninguém, mas ele não pode ver o Alfredo que fica agressivo! Enquanto aquela maldita cigana não receber o pagamento eu não vou ter paz! Bernardino, gosto muito de você, mas se esse touro ficar aqui eu vou embora com o nosso filho! Ou você dá um jeito de achar a cigana e entregar esse touro ou se livre dele!
– Pode ficar tranquila, meu amor – ele deu o braço a torcer.
Bernardino desceu, chamou três de seus peões e com pesar, ordenou:
– Matem o Parrudo!
– Sinhô, tem certeza? Matar o Parrudo? – Os peões estavam incrédulos.
– Sim, matem e dividam a carne entre vocês.
Mataram o touro Parrudo, cuja carne foi distribuída entre os trabalhadores da fazenda e suas famílias. Para eles era só mais um pouco de carne, mas Lúcia estava exultante, pois agora a maldição estava quebrada! A fim de lembrar-se de jamais fazer tratos com ciganos, Bernardino espetou a cabeça descarnada do touro numa das estacas que davam sustentação à cerca do curral.
***
O menino agora tinha oito anos e mantinha o mesmo ritmo de crescimento, bem como a boa saúde. O pai já permitia que ele se misturasse aos peões para aprender a lidar com algumas tarefas da fazenda, e a mãe assumira uma atitude mais relaxada desde que o motivo para se preocupar com a maldição de Soraia fora eliminado.
Alfredo gostava particularmente de observar os peões enquanto estes ajudavam as vacas prenhes a parir seus bezerros. Numa dessas ocasiões, ele estava fazendo justamente isso ao lado do pai quando sua mãe tocou o sino, anunciando que o almoço estava pronto. O trabalho fora cansativo e ele estava faminto, de modo que saiu em disparada.
– Calma, meu filho, a comida não vai fugir – disse o pai, sorridente.
Repentinamente, duas vacas começaram a brigar dentro cercado; uma delas deu uma forte cabeçada na outra, lançando-a de encontro às tábuas que cercavam o curral. O impacto balançou a estaca onde estava presa a cabeça de Parrudo e esta caiu no exato momento em que Alfredo passava correndo. Pego totalmente de surpresa com a queda da estaca, o garoto tropeçou e caiu com todo o seu peso sobre a cabeça do touro.
Lúcia soltou um grito de horror e veio correndo, chegando no momento em que Bernardino virava o filho. Ela levou as mãos à boca e soluçou ao ver que o chifre perfurara o lado esquerdo do tronco do menino, que agonizava. Com dificuldade, ele levantou as mãos e acariciou o rosto dos pais, que choravam.
– Pai, mãe, não fiquem tristes. O Tonho me contou; eu já sabia que meu destino era morrer nos chifres do touro Parrudo – disse, antes de seus braços penderem inertes ao lado do corpo. Estava morto.